INTRODUÇÃO
Uma das definições de IRA mais utilizadas na atualidade é proposta pela KDIGO (Kidney Disease Improving Global Outcomes).
Definições de Injúria Renal Aguda (KDIGO – 2012) |
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Estadiamento de gravidade da IRA (KDIGO – 2012) | |
IRA estágio 1 | Aumento da creatinina ≥ 0,3 mg/dl OU Aumento da creatinina 1,5 a 1,9 vezes o valor de base OU Débito urinário < 0,5 ml/kg/h por 6-12h |
IRA estágio 2 | Aumento da creatinina 2,0 a 2,9 vezes o valor de base OU Débito urinário < 0,5 ml/kg/h por > 12h |
IRA estágio 3 | Aumento da creatinina para um valor > 4,0 mg/dl OU Aumento da creatinina 3,0 vezes valor de base OU Débito urinário < 0,3 ml/kg/h por > 24h OU Anúria > 12h OU Início da terapia de substituição renal OU (Pacientes com < 18 anos): queda na TFG estimada para < 35 ml/ min/1,73 m2 |
EPIDEMIOLOGIA
A mortalidade na IRA persiste elevada, podendo chegar a 90% em algumas séries. A IRA dialítica ocorre em aproximadamente 5% dos pacientes em UTI. Com relação ao prognóstico, alguns pacientes não recuperam a função renal, tornando-se dialíticos. Em um grande estudo multicêntrico denominado BEST Kidney (Beginning and Ending Supportive Therapy for the Kidney), 13,8% dos sobreviventes desenvolveram insuficiência renal crônica (RIFLE E).
ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA
A injúria renal aguda pode ser causada por três mecanismos básicos.
IRA PRÉ-RENAL (55-60%)
Ocorre por hipofluxo renal. As causas são:
HIPOVOLEMIA
Doença gastrintestinal: (vômitos, diarréias, sangramentos), perdas renais (diuréticos, diurese osmótica por glicose), pele ou perdas respiratórias (perdas insensíveis, suor e queimados) e para o terceiro espaço (lesão por esmagamento e fraturas esqueléticas). Hipotensão: pressão arterial severamente diminuída pode resultar de choque (hipovolêmico, cardiogênico ou séptico) e pós tratamento de hipertensão severa.
ESTADOS EDEMATOSOS
ICC e cirrose podem resultar em marcada redução da perfusão sanguínea que é paralela à severidade da doença de base. Síndrome nefrótica, principalmente em adultos com lesão mínima, pode levar a injúria renal aguda, por redução da perfusão renal, permeabilidade glomerular reduzida e diurese excessiva, entre outros mecanismos.
ISQUEMIA RENAL SELETIVA
Estenose de artéria renal bilateral, estenose unilateral de rim único, que frequentemente piora a função renal com o uso de inibidores de enzima conversora de angiotensina (IECA), bloqueadores do receptor de angiotensina II (BRA) ou inibidores diretos de renina, embolia, trombose.
DROGAS AFETANDO A HEMODINÂMICA GLOMERULAR
Podem reduzir a taxa de filtração glomerular por reduzir a pressão intraglomerular. Pode ocorrer pela diminuição da dilatação arteriolar aferente (AINE ou inibidores de calcineurina) ou diminuição da vasoconstricção arteriolar eferente (IECA ou BRA). O efeito dos AINEs é principalmente visto naqueles pacientes que tenham alguma condição subjacente de hipoperfusão.
IRA RENAL INTRÍNSECA (35-40%)
Existe dano estrutural, ocasionado por fatores intrínsecos, os quais podem ser separados em alterações isquêmicas, nefrotoxicidade, doenças de pequenos vasos e glomérulos, doenças de grandes vasos e nefrite intersticial aguda. Quando a IRA não resulta primariamente de alterações vasculares, intersticiais ou glomerulares, costuma ser referida como necrose tubular aguda (NTA), responsável por cerca de 90% dos casos de azotemia renal intrínseca.
NECROSE TUBULAR AGUDA
Isquêmica (hipovolemia com hipoperfusão renal); tóxica (antibióticos, anfotericina B, ciclosporina e tacrolimus, aciclovir, AINEs, contrastes radiológicos, hemoglobina, mioglobina, bilirrubina, peçonhas animais, metais pesados, canabinóides sintéticos); Sepse (SIRS).
NEFRITE INTERSTICIAL AGUDA
Reação alérgica a medicamentos (beta-lactâmicos, rifampicina, sulfonamidas, quinolonas, furosemida, clortalidona, AINEs, cimetidina, etc); pielonefrites; infiltração (linfomas, leucemias, sarcoidose, doença de Sjögren, outras doenças imunológicas).
DOENÇAS VASCULARES
Inflamatórias (vasculites – glomerulonefrite necrotizante pauci-imune, poliarterite nodosa, granulomatose de Wegener, doença do soro); microangiopáticas (síndrome hemolítico-urêmica, púrpura trombocitopênica trombótica, hipertensão maligna, esclerodermia).
GLOMERULOPATIAS
Glomerulonefrites pós-infecciosas (estreptococcias, vírus, endocardite, abscessos abdominais), GN rapidamente progressivas (LES, síndrome de Goodpasture, poliarterite, granulomatosa de Wegener, púrpura de Henoch-Schönlein); GN membranoproliferativa.
IRA PÓS-RENAL (5-10%)
Obstrução do sistema uroexcretor.
URETRAL E PÉLVICA
Obstrução intrínseca (coágulos, cálculos, infecções fúngicas ou bacterianas); obstrução extrínseca (tumores, fibrose retroperitoneal, ligadura inadvertida dos ureteres, cálculos);
VESICAL
Cálculos, coágulos, carcinoma, neuropatia (bexiga neurogênica);
URETRAL
Estreitamento, fimose, hipertrofia prostática benigna, adenocarcinoma prostático.
FISIOPATOLOGIA
Quando a lesão está relacionada a deprivação de oxigênio ou nefrotoxicidade, acontece uma série de respostas das células epiteliais. A lesão resulta em uma perda rápida da integridade do citoesqueleto e da polaridade celular. Ocorre perda da borda em escova, perda da polaridade com deslocamento das moléculas de adesão e de outras proteínas de membrana, tais como a Na+K+ATPase e beta integrinas, bem como apoptose e necrose. Segue-se descamação de células viáveis e inviáveis, originando regiões onde a membrana basal representa a única barreira entre o filtrado e o interstício peritubular, ocorrendo “vazamento” desse filtrado, especialmente quando a pressão intratubular encontra-se aumentada devido a obstruções decorrentes de debris celulares que interagem com proteínas dentro da luz tubular. Todo este processo resulta na geração de mediadores inflamatórios e vasoativos, ocasionando piora da vasoconstrição e inflamação e consequentemente piora importante na redução do fluxo sangüíneo local.
Fazem parte do processo, a ação dos receptores toll-like reconhecendo produtos microbianos e material do hospedeiro liberado pela lesão; maior expressão endotelial de integrinas, selectinas, ICAMs e VCAMs devido à isquemia.
As fases tardias da IRA são caracterizadas por infiltração de macrófagos e linfócitos T, os quais predominam sobre os neutrófilos. As espécies reativas de oxigênio, geradas por leucócitos ativados e por células epiteliais durante a reperfusão e como resultado da resposta inflamatória, desempenham papel importante na lesão celular. Além dos mediadores gerados pelos leucócitos e pelas células endoteliais, as células epiteliais tubulares também estão envolvidas na cascata inflamatória, produzindo citocinas pró-inflamatórias e quimiocinas.
DIAGNÓSTICO
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
Nas azotemias mais graves aparecem sinais e sintomas de insuficiência renal, que juntos compõem a chamada síndrome urêmica aguda ou uremia aguda. Esta síndrome é composta por três distúrbios básicos: (1) acúmulo de toxinas nitrogenadas dialisáveis; (2) hipervolemia; (3) desequilíbrio hidroeletrolítico e acidobásico. Na IRA, para se desenvolver a síndrome urêmica, geralmente a creatinina está acima de 4,0 mg/dl e a ureia acima de 120 mg/dl.
MANIFESTAÇÕES CARDIOPULMONARES
A insuficiência renal aguda oligúrica ou anúrica pode causar retenção importante de líquidos e sódio, aumentando a volemia. Os sinais e sintomas de hipervolemia aguda são: (1) hipertensão arterial sistêmica (HAS): (2) edema agudo de pulmão (EAP), e (3) edema periférico.
A hipertensão arterial sistêmica é encontrada na IRA oligúrica ou anúrica das glomerulonefrites, nefrite intersticial aguda, nefroesclerose hipertensiva maligna, ateroembolismo por colesterol, síndrome hemolítico-urêmica, crise renal da esclerodermia e obstrução urinária aguda. A hipertensão, quando presente, pode ser grave e refratária ao tratamento medicamentoso, só respondendo à diálise. O procedimento dialítico deve ter como meta, nesta situação, não apenas a redução dos compostos azotêmicos, mas sim um processo conhecido como ultrafiltração (que na prática quer dizer “retirada de líquido”), movido por um gradiente pressórico.
Além da retenção hidrossalina, a insuficiência renal predispõe à vasoconstrição arteriolar sistêmica, talvez pela depleção de substâncias endógenas vasodilatadoras, como o óxido nítrico.
A retenção hidrossalina também promove congestão e edema pulmonar cardiogênico, levando à dispneia, ortopneia ou até insuficiência respiratória. As toxinas urêmicas podem aumentar a permeabilidade capilar pulmonar, levando a um componente não cardiogênico de edema pulmonar, do tipo SDRA (‘pulmão urêmico’). A ultrafiltração é mandatória nesses casos, reduzindo o edema pulmonar e melhorando a troca gasosa e a mecânica ventilatória.
O edema periférico está presente na síndrome nefrítica e no renal crônico com insuficiência renal agudizada. É do tipo periorbitário, das serosas (derrame pleural, pericárdico, ascite) e de regiões dependentes de gravidade (membros inferiores).
A pericardite urêmica manifesta-se com dor torácica pleurítica, associada a atrito pericárdico e/ou alterações eletrocardiográficas de pericardite aguda (taquicardia sinusal + pequeno supradesnível de ST de formato côncavo em várias derivações). Provém de uma inflamação pericárdica hipervascularizada, predispondo à rotura de capilares e sangramento. Por isso, o líquido pericárdico geralmente é hemorrágico. O tamponamento cardíaco é uma das complicações mais temíveis da uremia, pois pode ser fatal. Ocorre pelo acúmulo muito rápido de líquido na cavidade pericárdica, elevando subitamente a pressão intrapericárdica. A causa mais comum é o sangramento pericárdico, o que pode ser precipitado pelo uso de heparina na hemodiálise. Como prevenção, a hemodiálise deve ser realizada sem heparina nos pacientes com pericardite urêmica, ou então, deve-se preferir a diálise peritoneal.
MANIFESTAÇÕES HEMATOLÓGICAS
A anemia pode ocorrer, porém costuma ser menos acentuada que a anemia da uremia crônica. Diversos podem ser os fatores que causam anemia no paciente com uremia aguda, muitos deles não diretamente associados à insuficiência renal. Anemia é um achado muito frequente em pacientes graves e pode ser consequente à infecção, perda sanguínea, hemodiluição, hemólise etc.
A uremia aguda cursa com um distúrbio da hemostasia, devido à disfunção plaquetária. As plaquetas no paciente urêmico têm menor capacidade de adesão e agregação. O tempo de sangramento (TS) está caracteristicamente prolongado. O fator de Von Willebrand, elemento importante para a adesão plaquetária ao colágeno, está disfuncionante. As plaquetas encontram-se depletadas do fator III. A consequência clínica é uma forte predisposição ao sangramento. Epistaxe, gengivorragia, sangramento de sítios de punção, hemorragia digestiva e até mesmo AVE hemorrágico podem ocorrer. O uso de desmopressina (dDAVP) intranasal pode aumentar a disponibilidade do fator de VWB, melhorando o distúrbio hemostático da uremia.
MANIFESTAÇÕES NEUROLÓGICAS
A encefalopatia urêmica aguda caracteriza-se pelo estado de confusão mental, agitação psicomotora, associado à mioclonia (abalos musculares repetitivos), asterixis, hiperreflexia tendinosa e sinal de Babinski bilateral. O quadro pode evoluir para crise convulsiva tônico-clônica, torpor, coma e óbito por edema cerebral grave. A encefalopatia urêmica deve ser diferenciada da síndrome do desequilíbrio dialítico (edema cerebral desencadeado pelas primeiras sessões de hemodiálise, devido à queda súbita da osmolaridade extracelular) e da encefalopatia aguda pelo alumínio. A síndrome das pernas inquietas está relacionada à neuropatia urêmica. O paciente queixa-se de desconforto nos membros inferiores e uma vontade incontrolável de mexer as pernas. A neuropatía periférica pode levar a parestesias nas extremidades. A irritação do nervo frênico propicia o aparecimento de soluços incoercíveis, comuns na uremia aguda. As manifestações neurológicas da uremia aguda costumam melhorar com a diálise.
MANIFESTAÇÕES GASTROINTESTINAIS
Os primeiros sintomas da uremia aguda frequentemente estão relacionados ao aparelho digestório. A uremia provoca inflamação nas mucosas e disfunção na motilidade. Surgem então sintomas como: anorexia, náuseas e vômitos (como consequência à gastroparesia), diarreia ou íleo metabólico. Os sintomas gastrointestinais da uremia melhoram prontamente após o início da terapia dialítica.
DISTÚRBIOS HIDROELETROLÍTICOS E ACIDOBÁSICOS (FORMAS OLIGOANÚRICAS DE IRA)
Na injúria renal aguda podemos ter vários distúrbios hidroeletrolíticos e acidobásicos. Na forma oligúrica ou anúrica, os principais são: (1) hipercalemia; (2) hiponatremia; (3) acidose metabólica, (4) hiperfosfatemia, e (5) hipocalcemia.
A hipercalemia se dá pela redução da excreção renal de potássio, que continua sendo ingerido na dieta. Na IRA oligoanúrica, a calemia pode se elevar numa taxa de 0,5 mEq/l/ dia, podendo chegar a valores extremamente altos e perigosos, como 12 mEq/l. A causa de IRA que mais eleva o potássio sérico é a rabdomiólise, pela liberação maciça deste eletrólito a partir do músculo lesado. Mecanismo semelhante também pode ser visto na hemólise maciça (ex.: reação transfusional) e na síndrome da lise tumoral. A hipercalemia grave pode levar à parada cardiorrespiratória por fibrilação ventricular ou assistolia. O eletrocardiograma é fundamental para avaliar a repercussão clínica da hipercalemia: ondas T altas e apiculadas. QRS alargado e diminuição ou desaparecimento da onda P.
A hiponatremia se deve à retenção de água livre maior do que a retenção de sódio. Isso acontecerá sempre que a ingestão ou administração de líquido tiver um excesso importante de água em relação ao NaCl (ex.: água potável). Se a hiponatremia for grave, ou seja, Na < 110-115 mEq/L, podem surgir sintomas pelo edema cerebral citotóxico (intoxicação hídrica).
A acidose metabólica ocorre pela retenção dos ácidos produzidos pelo metabolismo proteico, principalmente o ácido sulfúrico (H2SO4) – doentes críticos com IRA por NTA oligúrica comumente apresentam hipercatabolismo proteico. A retenção de H+ leva ao consumo de bicarbonato, causando acidose metabólica. A retenção do sulfato (SO4-2) e outros ânions leva ao aumento do anion gap. A acidose pode ser grave, com o pH chegando a um valor < 7,10. Quando isso acontece, há risco de arritmia ventricular fatal ou choque por vasodilatação e baixa resposta às catecolaminas.
A hiperfosfatemia e a hipocalcemia normalmente ocorrem juntas. O fosfato precisa do rim para ser eliminado, havendo hiperfosfatemia (P > 4,5 mg/dl) quando a TFG está abaixo de 20 ml/min. A consequência imediata e mais importante da hiperfosfatemia é a hipocalcemia (Ca < 8,0 mg/dl). Isso se dá pela ligação entre o fosfato e o cálcio no plasma, através da seguinte reação: Ca+2 + HPO4-2 ⇾ CaHPO4 (fosfato de cálcio insolúvel). O fosfato de cálcio se precipita nos tecidos e o cálcio plasmático se reduz. Os sintomas da hipocalcemia grave são: irritação neuromuscular, como parestesias de extremidades ou perioral, tetania (espasmos musculares), convulsões e coma. Devemos sempre corrigir o cálcio sérico de acordo com o nível de albumina (ver capítulo de IRC). O ECG pode evoluir com aumento do intervalo QT. pois existe uma relação inversamente proporcional entre a calcemia e o intervalo QT: na hipocalcemia o QT se alarga, e na hipercal cernia o QT se encurta.
A hipermagnesemia (Mg > 2.0 mg/dl) é comum na IRA grave, podendo provocar bradipneia, hiporreflexia e parada cardíaca.
A hiperuricemia pode ocorrer na IRA, devido à saturação do carreador de ácidos orgânicos do túbulo proximal por outros ácidos retidos. Os níveis geralmente não ultrapassam 12 mg/ dl. Quando isso acontece, deve-se suspeitar da síndrome de lise tumoral ou nefropatia aguda pelo ácido úrico. Neste caso, a relação urinária ácido úrico/creatinina é caracteristicamente maior que 1.
FORMAS NÃO OLIGÚRICAS DE IRA
Na IRA resultante de doenças tubulares não oligúricas, a reabsorção tubular está prejudicada, como acontece na NTA por aminoglicosídeo, anfotericina B e na leptospirose. A lesão do túbulo proximal e da alça de Henle prejudica a reabsorção de magnésio e aumenta a excreção de potássio (maior aporte de sódio ao túbulo coletor), levando à perda urinária destes eletrólitos. A consequência costuma ser hipocalemia + hipomagnesemia. O hiperaldosteronismo hiper-reninêmico justifica a hipocalemia da nefroesclerose hipertensiva maligna. Em geral o prognóstico da IRA não oligúrica é melhor que o da IRA oligúrica.
EXAMES COMPLEMENTARES
Exames complementares na IRA:
→ EAS;
→ Bioquímica urinária e cálculo da FeNa;
→ Volume urinário;
→ Albumina;
→ Ureia, creatinina e ácido úrico;
→ Eletrólitos (Na, K, Ca, Mg, P);
→ Hemograma;
→ Gasometria;
→ Cálculo da TFG;
→ Ecografia renal e vias urinárias;
→ ECG caso hipercalemia.
Observar a diurese. Oligúria quando diurese < 400ml/dia (volume mínimo para a excreção de solutos, como ureia, Na e K). Lembrar que diurese > 400 ml/dia não exclui IRA.
Alterações laboratoriais: elevação de ureia, creatinina, ácido úrico; acidose metabólica; hipo ou hipernatremia; hipercalemia; hipo ou hipercalcemia.
CÁLCULO DA TFG
O cálculo da taxa de filtração glomerular pode ser feito pela Equação de Cockcroft-Gault (FIGURA).
SEDIMENTO URINÁRIO (EAS)
Deve-se analisar os seguintes parâmetros: (1) proteína; (2) hemácias; (3) piócitos; (4) cilindros; (5) cristais. Uma proteinúria maciça (3+ ou 4+) correspondente a mais de 3 g/24h, bem como a presença de hematúria dismórfica e cilindros hemáticos leva ao diagnóstico de glomerulopatia primária ou secundária. Piúria, eosinofilúria e cilindros piocitários sugerem o diagnóstico de nefrite intersticial alérgica. O encontro dos cilindros granulosos pigmentares (cilindros marrons) é muito sugestivo de NTA. Múltiplos cristais pleomórficos de ácido úrico ou de oxalato estão presentes, respectivamente, na síndrome da lise tumoral e na intoxicação por etilenoglicol. Uma forte positividade para hemoglobina (4+) com poucas hemácias no sedimento sugere a presença de mioglobinúria ou hemoglobinúria.
BIOQUÍMICA URINÁRIA
Na IRA pré-renal há um aumento de angiotensina II e aldosterona, promovendo aumento na reabsorção tubular de sódio e água. Com isso, a urina sai com pouco sódio e pouca água (hiperconcentrada). Na necrose tubular aguda (IRA renal), a lesão tubular dificulta a reabsorção de sódio e água. A urina então estará com muito sódio e muita água (mais diluída). Na NTA, os rins tornam-se incapazes de concentrar a urina – um distúrbio chamado isostenúria.
A fração excretória de sódio (FENa) é um parâmetro laboratorial bastante fidedigno para diferenciar entre azotemia pré-renal e NTA. Na primeira, está caracteristicamente < 1% (geralmente < 0,01%). Na última, está tipicamente > 1% (geralmente > 2%). A FENa representa o percentual do sódio filtrado que é efetivamente excretado na urina, e pode ser calculada (FIGURA).
A azotemia pré-renal em nefropatas crônicos, indivíduos muito idosos, após uso de diurético ou na bicarbonatúria pode cursar com FENa > 1 %. Por outro lado, cerca de 15% dos casos de NTA isquêmica apresentam FENa < 1%. ao que chamamos de ‘síndrome intermediária’, caracterizada pelo baixo fluxo renal e uma lesão tubular incipiente.
A fração excretória de ureia (FEureia) não é falseada pela uso de diuréticos, e por isso deve ser usada no lugar da FENa em pacientes que fizeram uso dessas drogas. É calculada pela mesma fórmula da FENa, substituindo-se o sódio pela ureia. Quando inferior a 35% indica pré-renal, e quando maior do que 50% indica NTA. Ressalte-se que o emprego da FEureia no lugar da FENa só foi validado no caso de uso de diuréticos – nas demais condições em que a IRA pré-renal pode cursar com FENa > 1 % a real utilidade deste marcador ainda não foi definida.
Diferença de IRA pré-renal e IRA renal (FIGURA).
DIFERENÇA DE IRA PRÉ-RENAL E IRA RENAL | ||
Índice | IRA Pré-renal | NTA |
Osmolaridade urinária | > 500 mOsm | < 350 mOsm |
Osmolaridade urinária/ plasmática | > 1,3 | < 1,1 |
Creatinina urinária/ plasmática | > 40 | < 20 |
Sódio urinário | < 20 mEq/l | > 40 mEql/l |
Fração de excreção de sódio (%) | < 1 | > 3 |
Fração de excreção de uréia (%) | < 35 | > 35 |
BIÓPSIA RENAL
Indicada apenas em casos selecionados:
→ IRA de causa desconhecida;
→ Quando a IRA se estende por mais de 4 semanas;
→ Paciente anúrico, na ausência de uropatia obstrutiva;
→ Suspeita de nefrite intersticial aguda, causada por reação a medicamentos (reversível com a retirada dos mesmos, e com uso de corticoides);
→ Suspeita de necrose cortical bilateral;
→ Suspeita de IRA causada por doença sistêmica (ex: LES);
→ IRA com proteinúria intensa e/ou persistente;
→ Suspeita de GN rapidamente progressiva ou vasculite.
CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS
O diagnóstico de injúria renal aguda normalmente é feito a partir de uma das seguintes situações clínicas: (a) redução do débito urinário, (b) sinais e sintomas da síndrome urêmica e (c) azotemia assintomática.
IRA PRÉ-RENAL
O tipo mais comum de IRA é a azotemia pré-renal. Isso se deve a elevada frequência de hipovolemia, estados de choque, insuficiência cardíaca, uso de diuréticos e cirrose hepática na prática médica. Os sinais de hipovolemia são: desidratação, hipotensão postural, taquicardia postural, hipotensão e taquicardia em decúbito, sinais de choque (má-perfusão generalizada). A perda líquida pode ser evidente, como na hemorragia externa, diarreia, vômitos e poliúria; ou nem tão evidente, como na pancreatite aguda, ascite, trauma muscular, hemoperitônio e hemotórax. O uso de AINE ou inibidores da ECA ou análogos, como os antagonistas da angio II, deve ser considerado como fator contribuinte ou precipitante da azotemia pré-renal.
O exame do sedimento urinário (EAS) na azotemia pré-renal costuma ser “inocente”, sem proteinúria ou hematúria, contendo apenas cilindros hialinos em quantidades variadas. A bioquímica urinária, se colhida antes da administração de diuréticos, possui as seguintes características: sódio urinário baixo (Nau < 20 mEq/L), osmolaridade urinária alta (> 500 mOsm/L), densidade urinária alta (> 1.020), relação de creatinina alta (Crurinária /Crsérica > 40), fração excretória de sódio baixa (FENa < 1%) e fração excretória de ureia baixa (< 35%). Conforme veremos adiante, tais valores podem ser utilizados para diferenciar a azotemia pré-renal da NTA isquêmica, duas causas comuns de IRA oligúrica que podem se confundir.
Pode ser realizado prova terapêutica com cristalóide: SF 0,9% 1.000 ml IV em infusão rápida, observando-se a diurese horária antes e depois da infusão. Se não houver resposta, é provável que já haja alguma lesão renal intrínseca, consequente à isquemia renal ou à doença de base, ou que a hipovolemia seja mais grave do que se pensava, sendo necessário administrar mais volume.
IRA PÓS-RENAL
Devemos suspeitar de obstrução urinária em todo paciente agudamente anúrico, ou que experimente flutuação do débito urinário (anúina x poliúria). Como a causa mais frequente é a hipertrofia prostática, é comum encontrarmos ao exame físico uma bexiga distendida palpável no hipogastro – o “bexigoma” – associada a um aumento da próstata no toque retal. A conduta imediata deve ser o cateterismo vesical, feito com o cateter de Foley.
Nos casos duvidosos, o exame inicial é a ultrassonografia de rins e vias urinárias. Este exame é capaz de observar a dilatação do sistema pielocalicial (hidronefrose) em cerca de 98% das vezes. A hidronefrose com bexiga vazia aponta para o diagnóstico de obstrução ureteral. O exame do sedimento urinário (EAS) pode apresentar hematúria e/ou piúria, porém, a presença de cilindros celulares não é esperada. Em casos tardios de uropatia obstrutiva (onde já se desenvolveu lesão tubular), é comum encontrarmos um padrão de NTA na bioquímica urinária (isto é, FENa > 1%).
IRA RENAL
A suspeita de azotemia renal intrínseca é inevitável uma vez excluídos os outros dois mecanismos de IRA (pré-renal e pós-renal). A diferenciação entre os diversos tipos de nefropatia intrínseca aguda deve ser feita pelos sinais clínicos e pelos exames laboratoriais, incluindo o exame de urina.
Vasculites sistêmicas, colagenoses, leptospirose e ateroembolismo por colesterol apresentam-se com manifestações características, levando ao diagnóstico com facilidade. A nefroesclerose hipertensiva maligna deve ser suspeitada na presença de fundoscopia compatível e níveis tensionais excessivamente altos. O diagnóstico de rabdomiólise impõe-se no paciente com história de algum fator precipitante (ex.: politrauma, isquemia muscular) e elevação importante dos níveis séricos de creatinofosfoquinase e aldolase.
O uso de medicamentos nefrotóxicos (aminoglicosídeos, anfotericina B, aciclovir, ciclosporina, cisplatina etc.) deve ser sempre pesquisado, bem como aqueles que podem ser incriminados em uma nefrite intersticial aguda (penicilinas, cefalosporinas, sulfas, diuréticos, rifampicina, alopurinol etc). A presença de febre, rash cutâneo e eosinofilia/eosinofilúria sugere o diagnóstico de nefrite intersticial aguda (NIA). As intoxicações também devem ser pesquisadas: etilenoglicol, metais pesados, paraquat, envenenamento por cobra ou aranha.
TRATAMENTO
O tratamento da IRA depende do tipo fisiopatológico. As azotemias pré-renal e pós-renal são exemplos de IRA prontamente reversíveis com a terapia.
IRA PRÉ-RENAL
O tratamento visa à otimização do fluxo sanguíneo renal. Drogas do tipo AINE ou IECA/BRA devem ser suspensas. A reposição de cristaloides é o tratamento inicial de escolha para os estados hipovolêmicos, qualquer que seja a causa ou o tipo de fluido perdido. A despeito de controvérsias persistentes, nunca foi demonstrada uma superioridade das soluções coloides no tratamento agudo da hipovolemia. Na realidade, o uso excessivo deste tipo de solução pode acarretar mais danos do que benefícios (ex.: discrasia sanguínea), além de elevar os custos do tratamento.
IRA PÓS-RENAL
Uma obstrução uretral por hiperplasia prostática pode ser prontamente tratada pela inserção do cateter de Foley. Se não for possível ultrapassar a obstrução uretral com o cateter, deve-se proceder à cistostomia. Se a obstrução for ureteral e houver hidronefrose, um cateter duplo J pode ser inserido no ureter por via transuretral (baixa) ou transpiélica (alta). Se a obstrução ureteral não puder ser vencida, uma nefrostomia percutânea estará indicada. Na presença de cálculos obstrutivos, os mesmos devem ser removidos.
IRA RENAL
A reposição hídrica deve contar com o volume oferecido na dieta. No paciente oligoanúrico, o somatório dos líquidos administrados deve ser igual às perdas insensíveis (600-1000 ml/24h). Não deve haver reposição de potássio nos pacientes francamente oligúricos. Os distúrbios eletrolíticos ameaçadores à vida devem ser prontamente tratados. A hipercalemia grave com alteração eletrocardiográfica deve ser tratada com gluconato ou cloreto de cálcio (efeito cardioprotetor) e glicoinsulinoterapia (10 U de insulina + 100 ml de glicose a 50%). O efeito da glicoinsulina é transitório (4-6 h), O bicarbonato de sódio pode ser administrado na dose de 50 mEq para ajudar na correção da hipercalemia e da acidose (se pH < 7,20, manter HCO3 > 15 mEq/L). A hiperfosfatemia grave pode ser abordada com quelantes enterais de fosfato, como hidróxido de alumínio, carbonato de cálcio ou, de preferência, sevelamer. Para a correção da hiponatremia é necessária a restrição de água livre.
O suporte nutricional adequado é importante na IRA grave. O diurético de escolha é a furosemida. A dose de ataque máxima é de 100-200 mg (5-10 ampolas). A dose de manutenção deve ser prescrita somente naqueles que respondem ao diurético, de modo a evitar o uso desnecessário de uma droga potencialmente ototóxica. A dose é 0,3-0,6 mg/kg/h, feita, de preferência por infusão contínua em bomba infusora.
DIÁLISE NA INSUFICIÊNCIA RENAL AGUDA
Os métodos dialíticos são empregados para reduzir a circulação de compostos azotêmicos, promover equilíbrio hidroeletrolítico e acidobásico e combater a hipervolemia (FIGURA).
INDICAÇÕES DE DIÁLISE DE URGÊNCIA |
Acidose metabólica grave refratária ou recorrente (pH < 7,1) Eletrólitos – Hipercalemia grave refratária ou recorrente (K > 6,5 mEq/L) Intoxicação – Síndrome urêmica inquestionável (sonolência, tremores, convulsões, coma; pericardite e tamponamento pericárdico, congestão pulmonar e pleurite; vômitos incoercíveis e hemorragias). HipervOlemia grave refratária a diurérico (HAS, edema pulmonar). Ureia > 200 ou Creatinina > 8-10* Mnemônico AEIOU: Acidose, Eletrólitos, Intoxicação, HipervOlemia, Ureia. |
(*) Na prática da maioria dos serviços de diálise do Sistema Único de Saúde – SUS, normalmente não se indica o procedimento dialítico apenas por valores de ureia ou creatinina séricas. Essa indicação ainda não foi confirmada em ensaios clínicos. |
REFERÊNCIAS
LONGO, et al. Harrison’s Principles of Internal Medicine. 18th ed. New York: McGraw-Hill, 2017.
RIELLA, MC. Princípios de nefrologia e distúrbios hidroeletrolíticos. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara Koogan, 2010.
ZATZ, R. Bases fisiológicas da nefrologia. 1ª Ed. Atheneu, 2012.
Kidney International Supplements (2012) 2, 3; doi:10.1038/kisup, 2012.