INTRODUÇÃO
Uma parte importante dos distúrbios neurovegetativos é causada pelo acometimento de fibras periféricas de pequeno calibre. Os eferentes finais do sistema nervoso neurovegetativo são constituídos principalmente por fibras não mielinizadas de pequeno calibre, assim como as fibras que conduzem as informações dolorosas (mecânica, térmica e química). Por isso, a maior parte dos distúrbios a serem mencionados a seguir causam também acometimento da sensibilidade à dor, havendo quadro de perda da sensibilidade dolorosa ou de dor intensa.
NEUROPATIAS PERIFÉRICAS
SISTEMA NERVOSO PERIFÉRICO
É um conjunto de estruturas anatômicas que possuem a célula de Schwann como célula-satélite. Compreende os nervos cranianos (exceto o nervo óptico), as raízes espinhais, os gânglios sensitivos das raízes dorsais, os troncos dos nervos periféricos e suas ramificações terminais, além dos constituintes periféricos do sistema nervoso autônomo (SNA).
Os neurônios motores se estendem desde o seu corpo celular no corno ventral da medula espinal até as junções neuromusculares no músculo que eles inervam. Os corpos celulares dos neurônios sensitivos primários estão situados fora da medula espinal, nos gânglios das raízes dorsais, de onde eles se estendem perifericamente até órgãos terminais sensitivos especializados, incluindo nociceptores, termorreceptores e mecanorreceptores.
Em cada segmento espinal medular, as raízes ventrais, que levam axônios motores, e as raízes dorsais, que levam axônios sensitivos, juntam-se para formar nervos mistos sensitivomotores. Nas regiões cervical, braquial e lombossacra, os nervos espinais mistos formam plexos dos quais se originam os principais nervos dos membros anatomicamente definidos.
Os axônios mielinizados de menor diâmetro (fibras finas) e não mielinizados (fibras amielínicas) provêm principalmente a nocicepção e as funções autonômicas. As fibras autonômicas simpáticas pré-ganglionares começam na coluna intermediolateral da medula espinal e fazem sinapse nos gânglios da cadeia simpática. As fibras parassimpáticas pré-ganglionares viajam longas distâncias desde os seus corpos celulares, no tronco cerebral ou na medula espinal, para atingir gânglios terminais próximos dos órgãos que essas fibras parassimpáticas inervam.
EPIDEMIOLOGIA
A prevalência das NP varia de 2 a 4%; entretanto, nas pessoas com idade superior a 55 anos, a prevalência aumenta para 8%, e sobe para 24% quando se consideram aqueles acima de 65 anos. Deve-se salientar que nesses dados não estão inclusas as lesões traumáticas dos nervos periféricos. Em termos globais a hanseníase continua sendo a maior causa de NP por conta de sua alta prevalência na Ásia, na África e nas Américas Central e do Sul, enquanto o diabete melito (DM) é a causa populacional mais comum nos países desenvolvidos.
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
A apresentação clínica das NP reflete diferentes combinações resultantes do acometimento das fibras nervosas sensitivas e motoras (Figura 1).
Associadamente, evidências de acometimento das fibras autonômicas podem estar presentes, como xeroftalmia, xerostomia, anidrose, hiperidrose, impotência sexual, alterações do ritmo cardíaco ou da pressão arterial retenção ou incontinência urinária, anormalidades da sudorese, constipação, alternando com diarreia, entre outras. A ocorrência de distúrbios tróficos alerta para a presença de NP de longa duração; entre os mais comuns estão pés cavos, aniculações de Charcot, úlceras plantares e dedos em martelo.
Função | Sinais Negativos | Sinais Positivos |
Motora | Déficit motor, atrofia muscular, hipotonia | Fasciculações, cãibras, tremor, neuromiotonia |
Reflexiva | Hipoativos ou abolidos | Raramente presentes ou vivos |
Sensitiva | Hipoestesia ou anestesia | Hiperestesia ou disestesia |
Autonômica | Desmaios, hipotensão postural | Distúrbios intestinais, vesicais, sexuais |
DIAGNÓSTICO
Na abordagem de um paciente com síndrome de neuropatia periférica, há tópicos importantes a serem avaliados na anamnese e exame físico:
→ Sistemas envolvidos. determinar se os sintomas e sinais envolvidos são motores, sensitivos e/ou autonômicos. Quando há evidência de envolvimento exclusivamente motor, a neuropatia motora deve ser diferenciada de miopatia ou doença da junção neuromuscular.
→ Distribuição da fraqueza. se simétrica (envolvimento difuso dos nervos periféricos, com predomínio distal: polineuropatias) ou assimétrica (envolvimento de um só nervo: mononeuropatias, ou de múltiplos nervos em tempos distintos: mononeuropatia múltipla). Se proximal, distal ou difusa.
→ Natureza do envolvimento sensitivo. Se de fibras finas (dor e temperatura), de fibras grossas (alterações motoras e proprioceptivas) ou amielínicas (dor e SNA).
→ Evolução temporal. se os sintomas são agudos (< 1 mês), subagudos (< 6 meses) ou crônicos (> 6 meses).
→ Evidência de história familiar. especialmente em pacientes com história crônica e insidiosa.
→ História de problemas clínicos associados. doença atual, uso de medicações, ocupação, cirurgias ou infecções prévias ou atuais.
Tipo de lesão da fibra nervosa:
→ Desmielinização segmentar: Degeneração da bainha de mielina com preservação do axônio. Recuperação pode ser rápida.
→ Degeneração walleriana: Interrupção focal do axônio. Degeneração secundária da mielina. Regeneração lenta.
→ Degeneração axonal: Lesão do neurônio. Degeneração secundária da mielina. Regeneração lenta.
Em geral, as NP afetam tanto nervos motores quanto sensitivos. Entretanto, certas neuropatias são predominantemente sensitivas, como a diabética, ou motoras, como a neuropatia motora multifocal. A maioria das neuropatias é simétrica, bem como dependente do comprimento, ou seja, envolve mais as porções distais que as proximais nos membros. Assimetrias pronunciadas nos sintomas sugerem transtornos específicos, como mononeuropatias ou mononeuropatias múltiplas, como acontece, por exemplo, na neuropatia hereditária por suscetibilidade a paralisias por pressão. Também é útil saber se os sintomas são agudos (< 1 mês), subagudos (< 6 meses) ou crônicos(> 6 meses). Por exemplo, a síndrome de Guillain-Barré desenvolve-se ao longo de um período de dias a semanas, enquanto a polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica evolui ao longo de meses e neuropatias hereditárias podem se desenvolver ao longo de anos.
EXAME NEUROLÓGICO
Atrofia de músculo é uma importante característica em muitas neuropatias sensitivomotoras ou motoras. Atrofia frequentemente ocorre nos músculos da dorsiflexão, como o tibial anterior, e nos músculos intrínsecos da mão, como o primeiro interósseo dorsal. Fasciculações são raramente vistas.
A fraqueza muitas vezes é mais pronunciada na dorsiflexão e eversão do pé e nos músculos intrínsecos da mão. Nas extremidades inferiores, a fraqueza em geral progride para os músculos da flexão plantar antes que músculos mais proximais sejam comprometidos. Na maioria das neuropatias sensitivomotoras ou motoras, simetria é a regra.
A perda sensitiva tem, usualmente, distribuição em meias e luvas nas neuropatias de fibras finas e grossas. Pés frios, eritematosos ou de coloração azulada sugerem perda de função de fibras finas. Perda sensitiva de fibras grossas, ou “ataxia sensitiva” nas extremidades superiores pode muitas vezes ser detectada por uma incapacidade do paciente de localizar o polegar acuradamente com o dedo indicador oposto enquanto com olhos fechados, ou pela presença de um tremor irregular característico (pseudoatetose) dos dedos das mãos.
O exame da sensibilidade deve incluir vibração, posição segmentar e toque leve (fibras finas), bem como dor e temperatura (fibras grossas). É importante determinar o grau e a extensão da perda sensitiva, além do padrão dos déficits (simétricos ou assimétricos; distais ou generalizados; focais, multifocais ou difusos) .
A ausência completa de reflexos no início do curso de uma neuropatia sugere neuropatia desmielinizante. Por outro lado, a ausência de reflexos aquileus, mas a presença de reflexos patelares ou das extremidades superiores normais, é comum nas neuropatias axonais, tanto adquiridas quanto hereditárias. Reflexos podem estar presentes em neuropatias de fibras finas.
Na avaliação da marcha, fraqueza sutil nos pés pode ser detectada por uma incapacidade do paciente de andar sobre os calcanhares. Ataxia sensitiva pode ser apreciada por uma marcha de base alargada.
EXAMES COMPLEMENTARES
ELETROMIOGRAFIA
Eletromiografia (EMG) e estudos de condução nervosa podem determinar se uma neuropatia é primariamente desmielinizante ou axonal e pode confirmar se o processo é simétrico ou assimétrico.
BIÓPSIA DE NERVO
Biópsia de nervo sensitivo superficial é ocasionalmente indicada em casos específicos quando se questiona a presença de vasculite, tumor, ou outro transtorno inflamatório. Biópsias de pele com quantificação da perda de pequenas fibras nervosas epidérmicas podem ajudar no diagnóstico de neuropatias sensitivas particularmente em neuropatias que envolvem uma perda de fibras finas, como as do diabetes melito, da infecção pelo vírus de imunodeficiência humana (HIV) ou de drogas quimioterápicas.
ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA
Fatores de risco incluem componentes da síndrome metabólica como: hipertrigliceridemia, obesidade, hiperglicemia, hipertensão e dislipidemia.
HIPERGLICEMIA
Hiperglicemia prolongada pode levar a dano celular de diferentes formas. Primeiro, excesso de glicose pode levar a sobrecarga da cadeia de transporte de elétrons da mitocôndria e geração de espécies reativas de oxigênio. Segundo, aumento do fluxo pelo via de poliois pode aumentar a osmolaridade celular, reduzir os níveis de NADPH, e levar ao estresse oxidativo. Por fim, aumento do fluxo pela via da hexosamina está associado ao dano inflamatório.
Outra consequência da hiperglicemia é a geração de produtos finais da glicação avançada (AGEs) via ligação de grupos de carbohidratos à proteínas, lipídios ou ácidos nucleicos. Esses grupos tendem a prejudicar a função biológica de proteínas, portanto afetando a função celular. AGEs extracelulares também se ligam ao receptor de AGE, iniciando uma cascata inflamatória, ativando NADPH oxidases e gerando estresse oxidativo.
DISLIPIDEMIA
A incidência de dislipidemia é alta em pacientes com diabetes tipo 2. Foi mostrado que ácidos graxos livres causam danos diretos à células de Schwann in vitro, e também possuem efeitos sistêmicos como aumento da liberação de citocinas inflamatórias por adipócitos e macrófagos. Lipoproteínas do plasma, como o LDL, podem ser modificadas pela oxidação ou glicação, esses LDLs podem se ligar a receptores extracelulares, ativando cascatas de ativação de NADPH oxidase e levando ao estresse oxidativo. Adicionalmente, colesterol pode ser oxidado a oxicolesterols, que causam apoptose em neurônios.
SINALIZAÇÃO DA INSULINA PREJUDICADA
A insulina possui efeitos neurotróficos, promovendo o crescimento e sobrevivência do neurônio. Redução dessa sinalização neurotrófica pela deficiência (DM1) ou resistência (DM2) à insulina contribui para a patogênese da neuropatia diabética. A resistência à insulina em neurônios ocorre pela inibição da via da PI3K/akt. Interrupção dessa via pode levar também a disfunção mitocondrial e estresse oxidativo, promovendo neuropatia.
Em pacientes com diabetes tipo 1, redução de peptídeo-C pode levar a disfunção do nervo de diversas forma, incluindo redução da atividade da sódio-potássio-ATPase, atividade da eNOs, e fluxo sanguíneo endoneural.
O controle rígido da glicose pode reduzir a neuropatia em pacientes com DM1, mas não é tão eficaz em pacientes com DM2.
POLINEUROPATIAS SIMÉTRICAS DISTAIS
Envolve primeiramente uma vasoconstrição da microvasculatura nervosa. Ocorre também estresse oxidativo resultante da reação da glicose com produtos de seu metabolismo e com o oxigênio, alterando a estrutura e função de proteínas essenciais para o funcionamento neuronal. Há estimulação da proteína C cinase, acarretando maior diminuição do fluxo sanguíneo na microcirculação neuronal e diminuindo a velocidade de condução nervosa.
NEUROPATIAS ASSIMÉTRICAS AGUDAS
Ocorre oclusão das arteríolas endoneurais, com resultante dano isquêmico ao nervo. Isso justifica o porquê da natureza focal desta forma clínica.
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
POLINEUROPATIA SIMÉTRICA DISTAL
Há perda sensitiva simétrica e insidiosa, afetando a sensibilidade superficial (parestesias e disestesias dolorosas) e/ou profunda, com ataxia sensitiva (marcha talonante). Habitualmente a fraqueza muscular é mínima. Os reflexos patelares e aquileus podem estar abolidos. Há progressão lenta dos sintomas da região distal para a proximal, ocorrendo nos pés e nas mãos. Com a progressão da doença, podem surgir sintomas autonômicos como gastroparesia alternando com diarreia, hipotensão postural e impotência.
NEUROPATIAS ASSIMÉTRICAS AGUDAS
Ocorre dor aguda e intensa na região afetada, seguida da perda sensitiva e déficit de força no local afetado. A maioria dos casos tem remissão, pelo menos, parcial. A dor pode remitir após alguns meses, mas pode-se levar um ano ou mais para a recuperação da fraqueza. Estas formas assimétricas podem ocorrer como radiculopatia lombossacra (dor e fraqueza na região superior da coxa), paralisia do III nervo craniano (ptose palpebral, oftalmoparesia, tipicamente com preservação dos reflexos pupilares) ou como mononeuropatia compressiva (síndrome do túnel do carpo).
EXAMES COMPLEMENTARES
Glicemia de jejum, teste de tolerância à glicose. Eletroneuromiografia para confirmação do diagnóstico topográfico, análise de envolvimento simétrico ou assimétrico e confirmar se a neuropatia é de origem desmielinizante (diminuição da velocidade de condução nervosa) ou é axonal (diminuição da amplitude dos potenciais de ação).
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Conforme suspeita clínica, pode-se solicitar: dosagem sérica de vitamina B12, sorologia para HIV, investigação de hanseníase; VHS e anticorpos relacionados a vasculites (fator reumatoide, c-ANCA, p-ANCA, anti-Ro/ SS, anti-La/SS, ANA e sorologia para hepatite B); eletroforese de proteínas e pesquisa de paraproteína (gamopatia monoclonal); pesquisa de tumores (se suspeita de paraneoplasias).
CONDUTA
CONTROLE DA GLICEMIA
Atualmente é a única medida que consegue prevenir ou impedir a progressão da neuropatia diabética. Dieta e exercícios físicos adaptados ao pé diabético, uso de hipoglicemiantes orais ou insulina.
CUIDADOS COM OS PÉS
Em função dos riscos de úlceras de pressão, devido às alterações de sensibilidade. Evitar calçados apertados e fazer higiene adequada dos pés.
CONTROLE DA DOR NEUROPÁTICA
Anticonvulsivantes (Pregabalina; Gabapentina ou Valproato de sódio); Inibidores de recaptação de serotonina (Duloxetina ou Venlafaxina); Antidepressivos tricíclicos (Amitriptilina); Capsaicina tópica. Acupuntura mostra bons resultados no controle da dor.
REFERÊNCIAS
Martins, MA; et al. Clínica médica, volume 6: doenças dos olhos, doença dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais, 2ª ed. Barueri, SP, Manole, 2016.